terça-feira, novembro 15, 2005

Enigma

As pedras caminhavam pela estrada. Eis que uma forma obscura lhes barra o caminho. Elas se interrogam, e à sua experiência mais particular. Conheciam outras formas deambulantes, e o perigo de cada objeto em circulação na terra. Aquele, todavia, em nada se assemelha às imagens trituradas pela experiência, prisioneiras do hábito ou domadas pelo instinto imemorial das pedras. As pedras detêm-se. No esforço de compreender, chegam a imobilizar-se de todo. E na contenção desse instante, fixam-se as pedras – para sempre – no chão, compondo montanhas colossais, ou simples e estupefatos e pobres seixos desgarrados.

Mas a coisa sombria – desmesurada, por sua vez – aí está, à maneira dos enigmas que zombam da tentativa de interpretação. É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios. Carecem de argúcia alheia que os liberte de sua confusão amaldiçoada. E repelem-na ao mesmo tempo, tal é a condição dos enigmas. Esse travou o avanço das pedras, rebanho desprevenido, e amanhã fixará por igual as árvores, enquanto não chega o dia dos ventos, e o dos pássaros, e o do ar pululante de insetos e vibrações, e o de toda vida, e o da mesma capacidade universal de se corresponder e se completar que sobrevive à consciência. O enigma tende a paralisar o mundo.

Talvez que a enorme Coisa sofra na intimidade de suas fibras, mas não se compadece nem de si nem daqueles que reduz à congelada expectação.

Ai! de que serve a inteligência – lastimam-se as pedras. Nós éramos inteligentes, e contudo, pensar a ameaça não é removê-la; é criá-la.

Ai! de que serve a sensibilidade – choram as pedras. Nós éramos sensíveis, e o dom da misericórdia se volta contra nós, quando contávamos aplicá-lo a espécies menos favorecidas.

Anoitece, e o luar, modulado de dolentes canções que preexistem aos instrumentos de música, espalha no côncavo, já pleno de serras abruptas e de ignoradas jazidas, melancólica moleza.

Mas a Coisa interceptante não se resolve. Barra o caminho e medita, obscura.

[Carlos Drummond de Andrade. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977; p. 162.]
Tudo sobre espelhos


Quando o Imperador fitou o espelho, o seu rosto tornou-se numa mancha vermelha de sangue e depois numa caveira donde escorria mucosidade. O Imperador, horrorizado, desviou o rosto.

Majestade, disse Shenkua, não desvieis o vosso rosto. Só vistes o princípio e o fim da vossa vida. Continuai a olhar para o espelho e vereis tudo o que existe e poderá existir. E quando tiverdes alcançado o máximo de enlevo, o próprio espelho mostrar-vos-á até mesmo coisas que não podem existir...

[Chin Nung, em Bruno Ernst. O mundo mágico de M. C. Escher. Köln: Taschen, 1991]

sábado, novembro 12, 2005

Ficto

Seria ele ou eu. Não havia espaço suficiente. Em minutos, todos ouviriam o som da queda. Não sabia como havia chegado até ali, e mesmo o fato de estar finalmente diante dele se passava, agora, como em um sonho desconfortável.

Mas, a realidade: ele ou eu. Pensei depressa e concluí que o melhor plano era o mais simples. Nos olhos dele, uma angústia impossível de ser descrita – eu não entendia como ele continuava vivo, de pé, diante de mim. Nem como seria sentir a angústia que ele deixava transparecer em seus olhos.

Lutei contra todas as dúvidas, os temores, lutei com alma de nobre e coração rutilante de incertezas. Chegava a doer. A simplicidade do plano e a clareza do gesto a ser executado eram-me diabolicamente mágicos: eu estava negociando minha alma por um punhado de areia de ampulheta.

Os segundos eram grandes, espaçosos. Havia dentro deles um caminho que desdobrava-se ao infinito. Aos poucos, fui chegando ao ponto de onde não poderia mais retornar. A sensação era ruim.

Movi minhas mãos. Ele, tentando defender-se, também moveu as suas. Ao mesmo tempo em que avancei, ele esticou seus braços em minha direção. Quando o toquei, senti como se estivesse roçando a pele de um cadáver.

Foi um contato desagradável, e para ele também deve ter sido, porque tive tempo de olhar seu rosto vincado de ódio e de pavor antes do gesto fatal.

Empurrei-o, por fim.

Ele despencou de grande altura. Senti uma vertigem insuportável, tive que fechar os olhos e encolher meu corpo.

Foi tudo tão horrível que mesmo agora, passado algum tempo, não posso ter certeza, mas arrisco o palpite de que quem caiu, na verdade, fui eu, e que tudo isso não passou de um grande engano. Quem poderia dizer o contrário? De qualquer modo, sinto-me morto e não pretendo voltar a olhar no espelho.

[Marpessa - publicado na edição #7 do Aquele]

sexta-feira, novembro 04, 2005