Ficto
Seria ele ou eu. Não havia espaço suficiente. Em minutos, todos ouviriam o som da queda. Não sabia como havia chegado até ali, e mesmo o fato de estar finalmente diante dele se passava, agora, como em um sonho desconfortável.
Mas, a realidade: ele ou eu. Pensei depressa e concluí que o melhor plano era o mais simples. Nos olhos dele, uma angústia impossível de ser descrita – eu não entendia como ele continuava vivo, de pé, diante de mim. Nem como seria sentir a angústia que ele deixava transparecer em seus olhos.
Lutei contra todas as dúvidas, os temores, lutei com alma de nobre e coração rutilante de incertezas. Chegava a doer. A simplicidade do plano e a clareza do gesto a ser executado eram-me diabolicamente mágicos: eu estava negociando minha alma por um punhado de areia de ampulheta.
Os segundos eram grandes, espaçosos. Havia dentro deles um caminho que desdobrava-se ao infinito. Aos poucos, fui chegando ao ponto de onde não poderia mais retornar. A sensação era ruim.
Movi minhas mãos. Ele, tentando defender-se, também moveu as suas. Ao mesmo tempo em que avancei, ele esticou seus braços em minha direção. Quando o toquei, senti como se estivesse roçando a pele de um cadáver.
Foi um contato desagradável, e para ele também deve ter sido, porque tive tempo de olhar seu rosto vincado de ódio e de pavor antes do gesto fatal.
Empurrei-o, por fim.
Ele despencou de grande altura. Senti uma vertigem insuportável, tive que fechar os olhos e encolher meu corpo.
Foi tudo tão horrível que mesmo agora, passado algum tempo, não posso ter certeza, mas arrisco o palpite de que quem caiu, na verdade, fui eu, e que tudo isso não passou de um grande engano. Quem poderia dizer o contrário? De qualquer modo, sinto-me morto e não pretendo voltar a olhar no espelho.
[Marpessa - publicado na edição #7 do Aquele]
Um comentário:
Você está em meus favoritos já há algum tempo, pois gosto da maneira como escreves e me leva a ver o que não vejo com uma maneira especial. Parabéns
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