sábado, maio 27, 2006

Um grande sertão dentro da gente


Todos ocupam-se do tempo; prefiro ocupar-me do espaço. O trabalho é o mesmo, as mesmas dores, e talvez, não sei, talvez seja a mesma coisa em tudo. Os longes no espaço se misturam aos longes do tempo. As distâncias, os buracos profundos e largos entre pessoas, coisas, fatos. Lonjuras que poderiam ser transpostas, mas não o são, porque o abismo, tão grande e perigoso, nos deixa imóveis no lugar onde estamos. Não vencemos o espaço. Tampouco o tempo, que segue comendo a vida, comendo a vida, comendo a vida. Para quê tanta corrida? É de se rir de tudo. Um dia nem mesmo este planeta vai sobrar, porque sabemos, o Sol vai explodir. Que importa tanta arte, tanto amor? Nada vai restar. Que importa almoçar bem, jantar bem, cuidar da saúde, criar animais, beber água de chuva? Um nada de importância, uma total impotência que paralisaria se não fôssemos teimosos, insistentes, renitentes, céticos, horrorosos, predadores, vazios e vagos d’alma, embusteiros, ladrões. Que apego, que pavor indescritível no fundo dos olhos! Tempo é ir e nunca voltar. Espaço é ficar. Chover no mesmo lugar.

Um sertão dentro da gente, um grande sertão cheio de caminhos que fazemos sozinhos, as outras gentes que só fazem sombra, no final a curva e só um Eu enorme a remar, no seco, no sol invernal. Aquele silêncio morno, eco do coração, a nos mostrar o que não há - o que não pode haver. Bate fundo na memória, esta sala atulhada de trastes, de cerimônias, e mesmo assim parada e triste lá dentro, como se ninguém a houvesse visitado. Espaço: longe. Tempo: longe. Tudo: espaço e tempo. Cordas rompidas. Tempos remotos, dizemos. É lá atrás. Indiscutivelmente lá atrás. Lugares remotos, dizemos: também lá atrás? Nem sempre. Ao lado. Porém inacessível, como o lá atrás do tempo remoto, esse moço de chapéu e luvas que surge no horizonte ao contrário quando partimos e esquecemos.

A margem de cá do rio é sempre tão clara e confusa, tão dia, tão viva. Deixemos a margem oposta se esconder por entre as brumas do entardecer, o lusco-fusco das seis, a treva faminta da noite. Deixemos, guardemos, que o moço de chapéu virá, em uma barca, buscar o que largamos por aí, lá atrás, nas profundas do passado, nos calendários do antes. O diabo, Ele-mesmo, habita outro lugar, com os medos e as coisas que chamamos de nomes feios – terceira margem. Porque sempre existe uma terceira margem, e nela sempre existe um diabo, nem tão feio, nem tão bonito quanto pintam.


[Marpessa - em dias de Guimarães Rosa, a se comemorar.]

12 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom o texto Marpessa! Ah se não fosse meu despoder... a única coisa que li do Sertão veredas, grande!!!

Stela disse...

sempre sua fã.
bjo

Anônimo disse...

O tempo, tão frio, que simplismente corroe parte de nós. Nos devora pouco a pouco. Cada dia, cada segundo. Não podemos vence-lo. Não podemos fugir dela. Não podemos mentir. Mas simplismente podemos, preenchemos ele. Ocupamos ele. Colocamos tanta vivencia... que nem o tempo irá vencer. Pois a viva foi vivida. E o tempo ao nosso lado, simplismente observa e dizemos a ela, "Eu vivi e você nunca poderá roubar minhas lembranças, e elas ficarão comigo até o fim da minha vida".

marcio castro disse...

saudade de entrar por aqui. valeu a clicada.

Anônimo disse...

Haverá algum dia de abraço?

Anônimo disse...

o ser-tão é como o coração da gente, abriga ao mesmo tempo o nada e o tudo, o inferno e o céu, a poesia e o escárnio, a vida e a morte.

a humanidade e a perfeição.

"no sertão tudo é perdido e tudo é achado"

salve O rosa. um abraço!

Stela disse...

E eu continuo amando essa cronópia (sic sic sic). ic ic ic.

Saudades eternas, pelo visto. E em dias de Nélson Rodrigues, "Amo-te", malvada amiga.

Anônimo disse...

Eu sei bem como é.
Até meu alter-ego ama a Map. Mesmo quando ela está em dias de mau-humor. rs

Stela disse...

Ah, vc teria orgulho da minha evolução musical. Lou Reed é uem Deus. Tenho tido uma overdose de Patti Smith, Velvet Underground e Leornard Cohen. E lembro de vc quando ouço Trampin'.
Beijo.

Stela disse...

Mas até que nem tanto esotérico assim, cara Map. Eu adoro o Coldplay. rárárá

Araiê disse...

Olá!
Gostei muito dos seus textos, você um ritmo dificil de encontrar!!!

Anônimo disse...

Sensibilidade fugidia, que em algumas pessoas encontra morada.
O poder das palavras tem o dom de levar-nos a ver diferentes lados.
Tu continuas de parabéns !