domingo, novembro 26, 2006

De publicações & amizades & futilidades

Lembram quando falei que ia sair um texto meu na revista Coyote? Pois então: acho que não saiu, nem vai sair, por motivos que me são desconhecidos. E o texto que ia sair na revista nordestina, também não sairá, mas essa eu sei o motivo, e tem a ver com o meu contato, o que me arrumou a publicação. Ele não é mais meu amigo - aliás, não é mais amigo da turma toda, porque ele é meio pirado e resolveu que os amigos dele de anos e anos não servem mais, uma vez que agora ele é um cara famoso, tem livro lançado pela Cosac&Naify, essas coisas de gente importante. Ele prefere o mundinho, ignorando a amizade. Prefere os amigos de ocasião que o incensam enquanto ele está na moda. Não nota que um dia será jogado na lata de lixo, trocado pelo próximo poeta da vez. Mas tudo bem. Ele vai sentir na pele, e então será bom para ele perceber como o mundo funciona de verdade.

[Marpessa]

segunda-feira, novembro 20, 2006

Axolote

Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotes. Ia vê-los no aquário do Jardim das Plantas e ficava horas olhando-os, observando sua imobilidade, seus imperceptíveis movimentos. Agora sou um axolote.
O acaso me levou até eles numa manhã de primavera em que Paris abria sua cauda de pavão-real depois de lenta invernada. Desci pelo Bulevar de Port-Royal, tomei St. Marcel e L'Hôpital, vi os verdes entre tanto cinza e me lembrei dos leões. Era amigo dos leões e das panteras, mas nunca entrara no úmido e escuro edifício dos aquários. Deixei minha bicicleta junto às grades e fui ver as tulipas. Os leões estavam feios e tristes e minha pantera dormia. Escolhi os aquários, olhei de esguelha os peixes vulgares, até dar inesperadamente com os axolotes. Fiquei uma hora olhando para eles e saí, incapaz de outra coisa.
Na biblioteca Sainte-Geneviève, consultei um dicionário e soube que os axolotes são formas larvais, providas de brânquias, de uma espécie de batráquios do gênero amblistoma. Que eram mexicanos, já o sabia por eles mesmos, por seus pequenos rostos rosados astecas e o cartaz no alto do aquário. Li que foram encontrados exemplares na África, capazes de viver em terra durante os períodos de seca, e que continuam sua vida na água ao chegar a estação das chuvas. Encontrei seu nome espanhol, ajolote, a menção de que são comestíveis e que seu azeite se usava (diria que não se usa mais) como o de fígado de bacalhau.
Não quis consultar obras especializadas, mas voltei, no dia seguinte, ao Jardim das Plantas. Passei a ir todas as manhãs, às vezes de manhã e de tarde. O guarda dos aquários sorria perplexo ao receber a entrada. Me apoiava na barra de ferro que cerca os aquários e ficava a olhá-los. Não há nada de estranho nisto, porque desde o primeiro momento compreendi que estávamos ligados, que algo infinitamente perdido e distante continuava, apesar disso, nos unindo. Fôra bastante parar, naquela manhã, diante do vidro, onde umas borbulhas corriam na água. Os axolotes se amontoavam em um mesquinho e estreito (só eu posso saber quão estreito e mesquinho) piso de pedra e musgo do aquário. Havia nove exemplares, e a maioria apoiava a cabeça contra o vidro, olhando com seus olhos de ouro os que se aproximavam. Perturbado, quase envergonhado, senti como uma impudicícia aparecer a essas figuras silenciosas e imóveis, aglomeradas no fundo do aquário. Isolei mentalmente uma, situada à direita e algo separada das outras, para estudá-la melhor. Vi um corpinho rosado e parecendo translúcido (pensei nas estatuetas chinesas de vidro leitoso), semelhante a um pequeno lagarto de 15 centímetros, terminado em um rabo de peixe de uma delicadeza extraordinária, a parte mais sensível do nosso corpo. Pelo lombo corria uma barbatana transparente, que se fundia com o rabo, mas o que me fascinou foram as patas, de uma finura sutilíssima, acabadas em miúdos dedos, em unhas minuciosamente humanas. Então descobri seus olhos, sua cara. Um rosto inexpressivo, sem outro rasgo que os olhos, dois orifícios como cabeça de alfinete, inteiramente de um ouro transparente, carentes de vida, mas olhando, deixando-se penetrar por meu olhar, que parecia passar através do ponto áureo e se perder em um diáfano mistério interior. Um finíssimo halo negro rodeava o olho e o introduzia na carne rosa, na pedra rosa da cabeça vagamente triangular, mas de lados curvos e irregulares, que lhe davam uma total semelhança com uma estatueta corroída pelo tempo. A boca estava dissimulada pelo plano triangular da cara; só de perfil se adivinhava seu tamanho considerável; de frente, uma fina rachadura mal rasgava a pedra sem vida. Em ambos os lados da cabeça, onde deviam ser as orelhas, cresciam-lhe três raminhos vermelhos, como de coral, uma excrescência vegetal, as brânquias, suponho. Era o que existia vivo nele; cada 10 ou 15 segundos os raminhos se levantavam rigidamente e voltavam a baixar. Às vezes uma pata se movia lentamente, eu via os dedos diminutos pousando, com suavidade, no musgo. É que não nos agrada nos mexermos muito, e o aquário é tão pequeno; mal avançamos um pouco, nos chocamos com o rabo ou a cabeça de outro dos nossos; surgem dificuldades, brigas, fadigas. Sentimos menos o tempo se estamos quietos.
Foi sua imobilidade que me fez inclinar fascinado, na primeira vez que vi os axolotes. Silenciosamente, me pareceu compreender sua vontade secreta, abolir o espaço e o tempo com uma imobilidade indiferente. Depois entendi melhor: a contração das brânquias, o tatear das finas patas nas pedras, o repentino nadar (alguns deles nadam com a simples ondulação do corpo) me provaram que eram capazes de fugir desse torpor mineral em que passavam horas inteiras. Seus olhos, sobretudo, me fascinavam. Ao lado deles, nos outros aquários, diversos peixes me mostravam a singela estupidez de seus belos olhos semelhantes aos nossos. Os olhos dos axolotes me falavam da presença de uma vida diferente, de outra maneira de olhar. Colando minha cara ao vidro (às vezes o guarda tossia, inquieto), procurava ver melhor os diminutos pontos áureos, essa entrada no mundo infinitamente lento e remoto das criaturas rosadas. Era inútil bater com o dedo no vidro, diante de suas caras; jamais se percebia a menor reação. Os olhos de ouro continuavam ardendo com sua doce, terrível luz; continuavam me olhando de uma profundidade insondável, que me dava vertigem.
E, apesar disso, estavam perto. Soube-o antes disto, antes de ser um axolote. Soube-o no dia em que me aproximei deles pela primeira vez. Os cortes antropomórficos de um macaco revelam, ao contrário do que acredita a maioria, a distância entre eles e nós. A absoluta falta de semelhança dos axolotes com o ser humano provou que meu reconhecimento era válido, que não me apoiava em analogias fáceis. Só as mãozinhas… Mas uma lagartixa tem também mãos assim, e em nada se parece conosco. Eu acho que era a cabeça dos axolotes, essa forma triangular rosada com os olhinhos de ouro. Isso olhava e sabia. Isso reclamava. Não eram animais.
Parecia fácil, quase óbvio, cair na mitologia. Comecei a ver nos axolotes uma metamorfose que não conseguia anular uma misteriosa humanidade. Imaginei-os conscientes, escravos de seu corpo, infinitamente condenados a um silêncio abismal, a uma reflexão desesperada. Seu olhar cego, o diminuto disco de ouro inexpressivo e entretanto terrivelmente lúcido, penetrava em mim como uma mensagem: "Salve-nos, salve-nos". Surpreendia-me murmurando palavras de consolo, transmitindo esperanças pueris. Eles continuavam me olhando, imóveis; de súbito, os raminhos rosados das brânquias se levantavam. Nesse instante eu sentia como uma dor surda; talvez me vissem, captavam meu esforço por penetrar no impenetrável de suas vidas. Não eram seres humanos, mas em nenhum animal encontrara uma relação tão profunda comigo. Os axolotes eram como testemunhas de algo, e às vezes como horríveis juízes. Sentia-me ignóbil diante deles; havia uma pureza tão espantosa nesses olhos transparentes. Eram larvas, mas larva quer dizer máscara e também fantasma. Atrás dessas caras astecas, inexpressivas e entretanto de uma crueldade implacável, que imagem esperava sua hora?
Temia-os. Acho que, se não sentisse a proximidade de outros visitantes e do guarda, não me teria atrevido a ficar só com eles. "Você os come com os olhos", me dizia rindo o guarda, que devia imaginar-me um pouco desequilibrado. Não percebia que eram eles que me devoravam lentamente pelos olhos, em um canibalismo de ouro. Longe do aquário, não fazia mais que pensar neles; era como se me influenciassem à distância. Cheguei a ir todos os dias, e de noite os imaginava imóveis na escuridão, avançando lentamente uma mão que, de súbito, encontrava a de outro. Talvez seus olhos vissem em noite escura, e o dia continuava para eles indefinidamente. Os olhos dos axolotes não têm pálpebras.
Agora sei que não houve nada de estranho, que isso tinha que acontecer. Cada manhã, ao inclinar-me sobre o aquário, o reconhecimento era maior. Sofriam, cada fibra do meu corpo entendia esse sofrimento amordaçado, essa tortura rígida no fundo da água. Espiavam algo, um remoto senhorio aniquilado, um tempo de liberdade em que o mundo fôra dos axolotes. Não era possível que uma expressão tão horrível, que conseguia vencer a inexpressividade forçada de seus rostos de pedra, não levasse uma mensagem de dor, a prova dessa condenação eterna, desse inferno líquido que padeciam. Inutilmente queria provar a mim mesmo que minha própria sensibilidade projetava nos axolotes uma consciência inexistente. Eles e eu sabíamos. Por isso não houve nada de estranho no que aconteceu. Minha cara estava grudada no vidro do aquário, meus olhos tratavam uma vez mais de penetrar no mistério desses olhos de ouro sem íris e sem pupila. Via de muito perto a cara de um axolote imóvel junto ao vidro. Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro, em vez do axolote vi minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, do outro lado do vidro. Então minha cara se afastou e eu compreendi.
Só uma coisa era estranha: continuar pensando como antes, saber. Notar isso foi, no primeiro momento, como o horror do enterrado vivo que desperta para seu destino. Fora, minha cara voltava a se aproximar do vidro, via minha boca de lábios apertados pelo esforço de compreender os axolotes. Eu era um axolote e sabia agora instantaneamente que nenhuma compreensão era possível. Ele estava fora do aquário, seu pensamento era um pensamento fora do aquário. Conhecendo-o, sendo ele mesmo, eu era um axolote e estava em meu mundo. O horror vinha — soube-o no mesmo momento — de me acreditar prisioneiro em um corpo de axolote, transmigrado a ele com meu pensamento de homem, enterrado vivo em um axolote, condenado a me mexer lucidamente entre criaturas insensíveis. Mas aquilo acabou quando uma pata veio roçar na minha cara, quando, mal me mexendo para um lado, vi um axolote junto de mim que me olhava, e soube que também ele sabia, sem comunicação possível, mas tão claramente. Ou eu estava também nele, ou todos nós pensávamos como um homem, incapazes de expressão, limitados ao resplendor dourado de nossos olhos, que olhavam a cara do homem grudada no aquário.
Ele voltou muitas vezes, mas agora vem menos. Passa semanas sem aparecer. Ontem o vi, olhou-me longamente e se foi bruscamente. Pareceu-me que não se interessava tanto por nós, que obedecia a um costume. Como a única coisa que faço é pensar, pude pensar muito nele. Ocorre-me que, a princípio, continuamos comunicados, que ele se sentia mais que nunca unido ao mistério que o preocupava. Mas as pontes estão cortadas entre ele e eu, porque o que era sua obsessão é agora um axolote, estranho à sua vida de homem. Acredito que, no início, eu era capaz de voltar de certo modo a ele — ah, só de certo modo — e manter alerta seu desejo de nos conhecer melhor. Agora sou definitivamente um axolote, e se penso como um homem é só porque todo axolote pensa como um homem dentro de sua imagem de pedra rosa. Parece-me que de tudo isto pude comunicar-lhe algo nos primeiros dias, quando eu ainda era ele. E nesta solidão final, à qual ele já não volta, consola-me pensar que talvez vá escrever sobre nós, pensando imaginar um conto, vá escrever tudo isto sobre os axolotes.

[Julio Cortazar, in Final do Jogo]

quarta-feira, novembro 15, 2006

Intervalo


[Hoje, nas dobras das horas, mais um daqueles dias em que se houve jazz e dá vontades de dominar o mundo, as letras, escrever até os dedos incharem e caírem, produzir absurdos, encher a cara de esperanças verdinhas em botão, caminhar dentro de livros e músicas, comer flores roxas, that’s allright mamma, estar dentro de outra pessoa, morar num abismo, cavalgar nuvenzinhas desfeitas, pedaços de trapo colorido, cansar de chorar e de rir, sentir cheiros fortes e doces, cinema e pipoca com guaraná, chuva na cabeça, vento nas janelas, correr pelo mato, fugir e se perder, esquecer o nome, o dia, o tempo, cortinas azuis de manhã, escrever escrever escrever escrever automaticamente, ranger dentes, suar pérolas, rasgar papéis... Sonhar mais um pouquinho com o livro maravilhoso que escrevi outra noite dessas (um capítulo inteiro, tão bom estava ficando! – falava de um grupo de jovens, e eles se comunicavam por metáforas que aconteciam concretamente). Tanto a fazer. Nas dobras. Dos minutos. Calar, sentir, descansar. Repouso, percepção. Pensamentinhos bobos. Luz de velas. Suco de caju. Um cigarro bem quietinho. ]

domingo, novembro 12, 2006

Meu livro

Em breve, existirá uma edição do meu livrinho, "Cotidiano no Diminutivo & outras histórias". Edição bancada por mim mesma, pequenininha (uns 100 exemplares), diagramada pelo amigo Pedro Gonzalez e com ilustrações da Cleise, amiga do Pedro. Quem quiser um, me peça (mande-me endereço completo), que eu envio, por um preço módico - farei o possível para baratear ao máximo a edição.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Uma borboleta branca

Com olhos úmidos, o velho observava o nada, parado e frio como um peixe. Havia certa palidez nas coisas, no verde das folhas nas árvores, na parede cinzenta da igreja, no rosto dos passantes ocasionais, nas asas sujas das pombas que bicavam o chão, rodando pela praça à cata de comida. Um ou outro pássaro cantando bem longe, de tempos em tempos. O velho, e o nada, o céu encardido de tristeza, tão morto.

Uma angústia funda, uma ferroada, afligia o velho naquele instante. A solidão, a grande distância intransponível, independente da vontade. Quase não podia suportar. Ao redor dele, a mesma igreja, o mesmo sino soando a cada hora, os mesmos idosos solitários. Tarde de domingo.

Com o final do dia, as pombas recolhiam-se, fartas. A luz abandonava devagar o céu. Outros velhos levantavam-se e iam, sabe-se lá para onde, ou para quê. Em pouco tempo não havia ninguém na praça além do velho de olhos úmidos. Ninguém, nada, o fim de todas as coisas enquanto o sino anunciava tristemente as seis horas.

Quando as badaladas cessaram, e quando a última delas terminou de ecoar, o velho estava mais só do que jamais estivera. Chorou sem lágrimas, gemeu sem palavras, aprisionado nas dobras do tempo, incapaz de qualquer idéia além da desesperança, sentindo nas costas o sopro gelado do vento enquanto as coisas todas fugiam da noite que se aproximava.

Então, ele sentiu uma vibração tímida no ar, um deslocamento no espaço, quase como se não fosse real. Abriu bem os olhos: era uma borboleta branca, pequena e tonta, que voejava sozinha pela praça. Talvez tenha sido atraída pelo calor do corpo do velho; começou a dar voltas em torno dele, atrapalhada, como se fosse setembro. O velho ficou espantado em ver aquela borboleta solitária, dançando inutilmente. E dela não se desprendia nenhum som, nem mesmo do bater de suas asas.

O velho chegou a gostar. Achou-a até bonita. Depois teve raiva, porque ficou pensando que talvez – somente talvez – ela poderia ser a responsável por aquela quietude pesada e obscura que o rodeava. Em um ser tão pequeno habitaria uma síntese grandiosa do espaço-tempo, como se todos os sons do universo convergissem para ela, que os guardaria, sem saber, no mistério de sua aparição. Era um princípio, e era também um fim, ainda que fosse apenas uma borboleta branca e tola. Um dia, por certo, não haveria mais ninguém além dela, sobrevoando alegremente o fim do mundo.

Com um gesto lento, o velho estendeu a mão. A borboleta pousou com suavidade sobre a carne que lhe era oferecida de modo tão gentil. Com a outra mão, o velho cercou a borboleta. Apanhou-a. Ela permaneceu imóvel em seu pavor. Ele olhou-a de perto, muito de perto. Cheirou-a, sentiu seu peso que era nada, viu manchas amarelas, minúsculas, em suas asas brancas. E enfiou-a na boca. Mastigou-a, os olhos úmidos, o rosto ferido de lágrimas. Desse modo, descoberto o verdadeiro sabor do silêncio – que era de pó e pedra - , o velho levantou-se e partiu. Para onde, e para quê, não se sabe.


[Marpessa de Castro - última participação no Aquele (edição 10)]