segunda-feira, agosto 23, 2004

rascunhos (18 de setembro de 2003)

[...] Só sabe ser quando abre o caderno vermelho, apanha a lapiseira vermelha e ocupa-se – a verdadeira ocupação – em desenhar letras com o grafite de cor indefinida, letras comendo as finas linhas azuis da superfície do papel, no verso a contraparte do que escreve, o passado de sua escrita do agora, confusos traços ao contrário, ela agora a mexer nos óculos que não estão (lentes de contato, esquece sempre), sente o contorno, o peso, a consistência deles, o que é o costume, minha gente. Só sabe ser quando escreve, espera que o pensamento não fuja, porque não há nada para se ver ao redor, o caderno é o espelho por excelência e a ela só interessa Ela Mesma. [...]

[...] Para escrever ficção é preciso primeiro viver as coisas, mas viver as coisas nem sempre significa “viver”; pode ser “assistir” ou “imaginar com força”, de tal forma desejar que essas duas ações estejam e sejam o viver. Ou, ainda, “representar”. Tem que ter um cinema ou um teatro dentro de si, e manter os sentidos todos anormalmente alertas. [...]

[...] Um perigo, um verdadeiro perigo quando até o mais prosaico dos gestos, o mais comum dos estados estáticos, se enche de importância e ganha profundidades caleidoscópicas, e tudo então se torna passível de análise, é uma loucura e você jura estar enlouquecendo também por enxergar profundezas em poças d’água, sentindo-se idiota e sentimental, caindo nas armadilhas do senso comum – ou não? Nada há de comum nisso. [...]

[...] Por que tudo parece esquisito e surreal? Por que raios estou agora me aprofundando em múltiplas realidades? [...]

[...] Por que diabos esperava um milagre, se nem sabia que tipo de milagre desejava? Angústia de sonhar com o milagre, de imaginar um leque tolo de milagres, qual deles queria, e por que o queria, se jamais viriam? Sempre o mesmo: não há milagres possíveis quando se espera por eles. Tomou mais um gole de chopp, os espelhos, Deus do céu, morava em um espelho postado diante de outro e ambos se refletem, ela mesma centenas infinitas de vezes, bonecas russas enfiadas umas nas outras até o indivisível do ser. Hoje recorda-se, é inevitável a recordação. O quarto, um grande espelho, cinco anos talvez, a vertigem da descoberta do inefável, o vazio das imagens refletidas até o fim do tempo e do espaço, até sumirem pequenas uma no íntimo da outra. Só sabe que frio e tudo se congelou, hoje compara ao sonho parisiense de Baudelaire, mas na ocasião era só um frio de solidão e pena das imagens que se perdiam durante a experiência, menina de filme de terror, dá medo olhar para dentro dos espelhos. Nessas horas, quando tudo se confundia, o mais sábio a fazer (curioso paradoxo) era fumar um longo e branco cigarro. [...]


[Marpessa]

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