terça-feira, setembro 21, 2004

Acorrentada

Eu tenho uma boneca bem pequenininha. Ela veste bordô, tem olhos azuis de plástico, duas minúsculas esferas. Bochechas redondas, nariz pontudinho e arrebitado. Devo dizer que a minha boneca tem menos de dez centímetros de altura e é recheada de bolinhas. Lembro-me que, muito antigamente, ela trazia no pescoço uma echarpe laranja, tudo muito pequeno e bom. A boquinha entreaberta confere um ar de bebê, e ela é um bebê. Apesar de ter quase trinta anos. Jamais vi um bebê verdadeiro tão belo quanto a minha bonequinha bordô. Eu a amo com a mesma intensidade do dia em que a ganhei, e lá se vão anos de infância, quintais, gatos e bolhas de sabão à luz do entardecer.

Pois então: estou seriamente desconfiada de que a boneca não quer ir embora. De lá para cá, desde aquele tempo escondido em décadas passadas, andei por aí, de casa em casa, de rua em rua, de cidade em cidade. Vi minhas coisas sendo encaixotadas; logo também eu mesma encaixotei minhas coisas. Perdi muito nesses anos: objetos que me eram caros, lugares especiais, meus anos de flor em botão. Mas nunca, nunca a minha bonequinha bordô. E como isso é possível? Uma boneca tão pequena e fácil de sumir! Não sumiu. Quando eu a beijava, nos anos de flor em botão, quem pensaria? A boneca venceu. Venceu o tempo, o espaço, o esquecimento, a própria morte. Bonecas não morrem; essa, em especial, recusa-se. Diz: ela é minha, e não eu dela. O que, convenhamos, só pode ser verdade. Jamais brigamos. Eu a amo.

E que surpresa agora! É o que mais amo nessa vida. Sem a minha bonequinha, não vivo. Se a perder, acabo-me. Mas sei que ela não me deixará partir sem carregá-la. Quando eu me for, alguém terá a decência de depositá-la em minha bagagem. Assim espero.

(Ai! Que já não posso com minhas lágrimas!)

[Marpessa]

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