terça-feira, setembro 21, 2004

Nota inacabada de Morelli

Jamais poderei renunciar ao sentimento de que aí, encostado à minha cara, entrelaçado nos meus dedos, existe algo como uma deslumbrante explosão em direção à luz, uma irrupção de mim para o outro e do outro em mim, algo infinitamente cristalino que poderia coagular e transforma-se em luz total sem tempo nem espaço. Como uma porta de opala e diamante a partir da qual se começa a ser aquilo que se é verdadeiramente e que não se quer e que não se sabe e que não se pode ser.

Nenhuma novidade nessa sede e nessa suspeita, mas sim um desconcerto cada vez maior frente aos ersatz que me oferece esta inteligência do dia e da noite, esse arquivo de dados e de recordações, estas paixões onde vou deixando pedaços de tempo e de pele, estes indícios tão debaixo e longe daquele outro indício aí do lado, junto do meu rosto, previsão já misturada com a visão, denúncia daquela liberdade fingida com que me movo pelas ruas e pelos anos.

Dado que sou apenas este corpo, já podre num ponto qualquer do tempo futuro, estes ossos que escrevem anacronicamente, sinto que este corpo está se reclamando, reclamando à sua própria consciência aquela operação ainda inconcebível por meio da qual deixaria de ser podridão. Este corpo que sou eu tem a presciência de um estado em que, ao negar-se a si mesmo como tal, e ao negar simultaneamente o correlato objetivo como tal, sua consciência teria acesso a um estado fora do corpo e fora do mundo, que seria o verdadeiro acesso ao ser. O meu corpo será, não o meu Morelli, não eu, que em mil novecentos em cinqüenta já estou podre em mil novecentos e oitenta, o meu corpo será porque detrás da porta de luz (como designar esta insistente certeza encostada ao meu rosto?) o ser será outra coisa que não corpos e, que não corpos e almas e, que não eu e o outro, que não ontem e amanhã. Tudo depende de... (uma frase riscada).

Final melancólico: um satori é instantâneo e soluciona tudo. Mas, para chegar a ele, seria necessário recuar na história de fora e de dentro. Trop tard pour moi. Crever en italien, voire en occidental, c’est tout ce qui me reste. Mon petit café-crème le matin, si agréable...

[Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha, cap. 63]

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