segunda-feira, outubro 11, 2004

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É madrugada, horário mágico que antecede a Criação. Encosto meu rosto contra o vidro da janela. Ao longe, um cão solta um latido débil, que logo desaparece encoberto pelo silêncio de sepulcro que rege o mundo. Meus olhos pendem para o canto esquerdo da rua, buscando um sinal. Seu sinal. Luzes amarelas ainda reinam invictas, apesar de as poucas estrelas estarem finalmente desaparecendo.

Instante tão quieto merecia companhia. Sua companhia.

Mas nada de ti.

Rememoro o primeiro instante em que pus a vista em você e no que pensei, eu sou assim, você bem sabe: esse prazer envergonhado de rememorar e te lamber e te farejar pelos cantos escuros da memória, te caçando como uma águia enquanto você escapa com uma facilidade que me ofende. Ainda assim, um momento de distração sua e pronto, eis você diante de mim, esparramando aquele sorriso que conheço tão bem e de tanto tempo.

Seu sorriso.

Distraindo-se, aprisiono-te sem piedade.

Tudo de ti, agora.

Um primeiro pássaro canta. Logo, centenas de outros acordarão para festejar o dia, e nós deveríamos, que diabo, festejar também porque a vida é uma só e perdemos tanto em não comemorar o alvorecer como os pássaros fazem, com excelência, de modo irretocável.

Encho-me de poesia. Tua poesia.

O céu desbota devagar.

Reconstruo teu rosto seguindo as pistas que a sua imagem aprisionada me apresenta. Vejo você chorando, absoluto indício de fragilidade, aquele dia, tudo tão morno e doloroso. Estávamos às vésperas do outono e você chorou de modo tão doído que agora, diante da madrugada que desmaia, tudo o que enxergo são lágrimas. Minhas lágrimas, que teimam em brotar.

Não estou verdadeiramente triste. O que me dá aqui por dentro é um encantamento diante da sua imagem, emparedada por mim, pronta para me servir de bálsamo porque o belo é mais que sagrado. Diante mim, confundidos, o dia e você, no mesmo prato de balança.

Celebro na solidão o mundo nascendo, e com ele você, de novo, em mim.

[Marpessa]

4 comentários:

Anônimo disse...

Uau! Quando eu crescer, eu queria ser escritor. E escrever igual a você! Feliz dia das crianças...

http://moacircaetano.blog.uol.com.br

Bruno Domingues Machado disse...

Ótimo texto "o dia e você, no mesmo prato da balança". Gostei da frase. O texto anterior, do Borges, é excepcional. Sou fã desse argeintino.

Anônimo disse...

Sim, eu me rendo. Acredito que seria piegas demais tecer algum cometário sobre o que acabei de ler. Limito-me a dizer que gostei. E senti. Erudições e maiores ovações deixo a cargo dos críticos e escritores.

Júlio Castro
http://oestro.blogdrive.com

Anônimo disse...

(risos)
...sobrenome Castro, veia literária, divagações sobre irmão perdido...
Só para aumentar um pouco esse rol, também sou de Santo André, São Paulo, Brazil.