Do nascimento dos cronópios
Gestação
Redonda e doce como uma maçã do amor, a mãe cronópia. Ela, quando fica bem quieta (seja num ponto de ônibus, no metrô ou no banho), consegue ouvir seu bebê dançando catala. Nessas horas de dança intra-uterina, a mãe cronópia fica um pouco assustada porque não pode entender como um ser tão pequeno pode dançar tão bem – um verdadeiro fenômeno que a mãe cronópia tenta esconder nos lugares públicos (sabemos que a catala é barulhenta). Quando ela está no banho e o pequenino começa a dançar, ela não se assusta tanto e dança também, com grande cautela para não escorregar e cair.
Repleta de prodígios é a gestação dos cronópios. Além de dançarem catala no calor e maciez do útero materno, os cronópios assobiam, denotando um gosto musical pré-natal apurado. A mãe normalmente fica surpresa quando ouve o assobio fraquinho, distante, pela primeira vez, mas se acostuma e assobia junto com o filho, porque é triste demais ouvir uma barriga assobiar sozinha.
Um último prodígio, que merece ser contado: as bolhas de sabão. É notório que cronópios de todas as idades adoram fabricar bolhas, e isso se revela desde a gestação. É nesse período cheio de maravilhas que a personalidade singular de um cronópio começa a se construir, e por isso as bolhas de sabão aparecem, a mãe cronópia soluçando e no meio de um chá, de uma festa ou em um ônibus surge aquela imensa bola transparente colorida, caprichosamente criada pelo bebê-cronópio apenas para fazer graça e a mãe, em vez de ficar constrangida, aprecia com delícia os olhares longos que perseguem a bolha até que esta se estoure contra uma janela, um cigarro ou uma cabeça.
As mães cronópias, redondas e doces como só elas podem ser, não vêem a hora de botar as mãos nos seus bebezinhos que já nascem sabendo tanta coisa.
***
Parto
Os cronópios costumam se recusar a nascer. Às vésperas do nascimento bate-lhes uma angústia pré-existencial tão grande e tão forte que eles meditam muito profundamente sobre se vale mesmo a pena, afinal tanta dor e um cansaço... De qualquer forma, não têm como escapar: todos ao redor os incitando a vir, a dar as caras, que se há de fazer. Eles nascem, mas com uma relutância que francamente. A mãe chora, esparrama-se, implora, tão doce e redonda. Bolhas de sabão saem às dúzias, catalas e assobios e uma confusão incrível que nem parece verdade, tudo na hora em que os cronópios estão nascendo.
Quando finalmente deixam o corpo da mãe para cair na vida, dão um tremendo trabalho ao doutor porque vêm envoltos em uma gosma tão úmida que eventualmente são confundidos com axolotes. Mas claro, uma mãe cronópia não pode dar à luz um axolote; no entanto, ninguém fica sossegado enquanto o pequeno não é limpo de acordo com as regras. Daí se vê sua umidade natural, verdinha, e todos têm a certeza de estarem vendo um cronópio e não um axolote. Cobrem-no de carícias, às quais ele nem sempre corresponde porque ainda tão exausto e um tanto quanto chateado. Não está completamente convencido de que foi um bom negócio, especialmente se abre os olhos e vê o pai e os tios dançando uma catala, no mínimo, constrangedora.
***
[Marpessa]
CASA, s.f. edifício destinado a habitação. et coetera. ESPELHO, s.m. superfície brilhante e polida que reflete os raios luminosos ou a imagem dos objetos. et coetera.
domingo, julho 31, 2005
quarta-feira, julho 27, 2005
Da inutilidade de chutar as borboletas
Não há quem me convença do contrário: chutar borboletas é inútil. Primeiro, porque é impossível, uma vez que a cada arremesso de perna e pé para cima, qualquer borboleta minimamente medrosa (e todas o são) tratará de voar para bem longe e talvez nunca mais voltar. E nós queremos que elas voltem, não é certo? Por isso, a fuga da borboleta torna o chute idiota o suficiente para constranger seu autor.
Em segundo lugar, o objetivo ao se tentar chutar uma borboleta não será alcançado nem mesmo se o chutador amarrar a borboleta bem firme a um barbante longo e a outra ponta deste a um galho de árvore baixo. Porque a borboleta será chutada, mas deixará então de ser uma borboleta para ser uma borboleta-presa-a-um-barbante, o que a tornará menos borboleta; o objetivo, então, se perde por completo.
Terceiro lugar: borboletas não têm memória. Que lhes importa ganharem chutes, se não se recordarão deles depois, com lágrimas em todos os olhos e um profundo rancor? Sentem medo, mas não guardam tristezas consigo.
E por fim, com chutes ou não-chutes, elas estão por aí, sempre. Que se há de fazer? Ainda riem-se de nós.
[Marpessa]
Não há quem me convença do contrário: chutar borboletas é inútil. Primeiro, porque é impossível, uma vez que a cada arremesso de perna e pé para cima, qualquer borboleta minimamente medrosa (e todas o são) tratará de voar para bem longe e talvez nunca mais voltar. E nós queremos que elas voltem, não é certo? Por isso, a fuga da borboleta torna o chute idiota o suficiente para constranger seu autor.
Em segundo lugar, o objetivo ao se tentar chutar uma borboleta não será alcançado nem mesmo se o chutador amarrar a borboleta bem firme a um barbante longo e a outra ponta deste a um galho de árvore baixo. Porque a borboleta será chutada, mas deixará então de ser uma borboleta para ser uma borboleta-presa-a-um-barbante, o que a tornará menos borboleta; o objetivo, então, se perde por completo.
Terceiro lugar: borboletas não têm memória. Que lhes importa ganharem chutes, se não se recordarão deles depois, com lágrimas em todos os olhos e um profundo rancor? Sentem medo, mas não guardam tristezas consigo.
E por fim, com chutes ou não-chutes, elas estão por aí, sempre. Que se há de fazer? Ainda riem-se de nós.
[Marpessa]
O almoço
Com muito trabalho um cronópio conseguiu construir um termômetro de vidas. Alguma coisa entre termômetro e topômetro, entre fichário e curriculum vitae.
Por exemplo, o cronópio recebia em sua casa um fama, uma esperança e um professor de línguas. Aplicando suas descobertas, estabeleceu que o fama era infravida, a esperança paravida e o professor de línguas intervida. Quanto a si próprio, considerava-se ligeiramente supervida, mais por poesia que por verdade.
Na hora do almoço esse cronópio se divertia ouvindo os seus convidados falarem, porque todos achavam que estavam se referindo às mesmas coisas e não era assim. A intervida manejava abstrações tais como espírito e consciência, que a paravida ouvia como quem ouve chover – tarefa delicada. É evidente que a infravida pedia a todo momento queijo ralado, e a supervida trinchava o frango em quarenta e dois movimentos, método Stanley Fitzsimmons.
Na sobremesa, as vidas se cumprimentavam e iam às suas ocupações, e na mesa ficavam apenas pedacinhos soltos da morte.
[Julio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas]
Com muito trabalho um cronópio conseguiu construir um termômetro de vidas. Alguma coisa entre termômetro e topômetro, entre fichário e curriculum vitae.
Por exemplo, o cronópio recebia em sua casa um fama, uma esperança e um professor de línguas. Aplicando suas descobertas, estabeleceu que o fama era infravida, a esperança paravida e o professor de línguas intervida. Quanto a si próprio, considerava-se ligeiramente supervida, mais por poesia que por verdade.
Na hora do almoço esse cronópio se divertia ouvindo os seus convidados falarem, porque todos achavam que estavam se referindo às mesmas coisas e não era assim. A intervida manejava abstrações tais como espírito e consciência, que a paravida ouvia como quem ouve chover – tarefa delicada. É evidente que a infravida pedia a todo momento queijo ralado, e a supervida trinchava o frango em quarenta e dois movimentos, método Stanley Fitzsimmons.
Na sobremesa, as vidas se cumprimentavam e iam às suas ocupações, e na mesa ficavam apenas pedacinhos soltos da morte.
[Julio Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas]
terça-feira, julho 05, 2005
Historinha cronópica (três autores)
um cronópio estava com muito frio. o pobrezinho, no entanto, não estava em sua casa e sim num ponto de ônibus, sob uma garoa fina de julho, e com uma bolha no pé direito. havia esquecido a carteira sobre a mesa da cozinha e seu guarda-chuva tinha apenas 5 varetas em bom estado.ele pensou com seus botões vermelhos: "estou tremelicando feito um dente-de-leão e não tenho um agasalho nem dinheiro. que farei?" [Marpessa]
Um fama que estava ocupado em sacudir nervosamente seu barômetro atravessava a "calle Suipacha" em direção ao cronópio, vociferando que imprestável, que onde ciência quando chuva mesmo assim, que vergonha chegar encharcado à casa do ministro, aranhas ou não aranhas.O cronópio viu que seus problemas não eram tão relevantes, olhou para seu guarda-chuva como quem sacode um barômetro, e ensaiou os primeiros passos de catala, que é o que cronópios fazem quando estão com frio, julho e chuva. [Caio Leonardo]
Do outro lado da Suipacha, dobrando a esquina da Calle Florida, vinha uma Esperança de guarda-chuva. O cronópio, mais úmido que nunca, e o Fama, visivelmente incomodado por haver molhado a barra de suas calças de linho francês, se olharam gravemente. Então o Cronópio soltou um uivo descomunal. O Fama cobriu a cara com sua maleta ensopada e se meteu fujão num dos cafés da Nove de Julho. A Esperança, sem entender bem a situação, foi buscar o Cronópio que se refugiara debaixo da marquize depois que a última lufada de vento quebrou as 3 varetas restantes do seu paráguas. Haviam caminhado já sete quadras quando a Esperança suspirou:-"Oh, está chovendo e eu nem tinha notado", e continuou assobiando um tango malíssimo que latejava lá no dedão do pé direito do nosso Cronópio. Era julho e admiráveis gotas se atiravam suicidas do alto das ventanas antes de pipocar no guarda-chuva da Esperança. Ela, por sua vez, nem notava. [Mariana Sanchez]
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um cronópio estava com muito frio. o pobrezinho, no entanto, não estava em sua casa e sim num ponto de ônibus, sob uma garoa fina de julho, e com uma bolha no pé direito. havia esquecido a carteira sobre a mesa da cozinha e seu guarda-chuva tinha apenas 5 varetas em bom estado.ele pensou com seus botões vermelhos: "estou tremelicando feito um dente-de-leão e não tenho um agasalho nem dinheiro. que farei?" [Marpessa]
Um fama que estava ocupado em sacudir nervosamente seu barômetro atravessava a "calle Suipacha" em direção ao cronópio, vociferando que imprestável, que onde ciência quando chuva mesmo assim, que vergonha chegar encharcado à casa do ministro, aranhas ou não aranhas.O cronópio viu que seus problemas não eram tão relevantes, olhou para seu guarda-chuva como quem sacode um barômetro, e ensaiou os primeiros passos de catala, que é o que cronópios fazem quando estão com frio, julho e chuva. [Caio Leonardo]
Do outro lado da Suipacha, dobrando a esquina da Calle Florida, vinha uma Esperança de guarda-chuva. O cronópio, mais úmido que nunca, e o Fama, visivelmente incomodado por haver molhado a barra de suas calças de linho francês, se olharam gravemente. Então o Cronópio soltou um uivo descomunal. O Fama cobriu a cara com sua maleta ensopada e se meteu fujão num dos cafés da Nove de Julho. A Esperança, sem entender bem a situação, foi buscar o Cronópio que se refugiara debaixo da marquize depois que a última lufada de vento quebrou as 3 varetas restantes do seu paráguas. Haviam caminhado já sete quadras quando a Esperança suspirou:-"Oh, está chovendo e eu nem tinha notado", e continuou assobiando um tango malíssimo que latejava lá no dedão do pé direito do nosso Cronópio. Era julho e admiráveis gotas se atiravam suicidas do alto das ventanas antes de pipocar no guarda-chuva da Esperança. Ela, por sua vez, nem notava. [Mariana Sanchez]
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