Labirinto
Não haverá nunca uma porta. Estás dentro
E o alcácer abarca o universo
E não tem nem anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que teimosamente se bifurca em outro,
Tenha fim. É de ferro teu destino
Como teu juiz. Não aguardes a investida
Do touro que é um homem e cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe. Nada esperes. Nem sequer
A fera, no negro entardecer.
[Jorge Luis Borges, in O Elogio da Sombra]
CASA, s.f. edifício destinado a habitação. et coetera. ESPELHO, s.m. superfície brilhante e polida que reflete os raios luminosos ou a imagem dos objetos. et coetera.
sábado, outubro 30, 2004
Maio 20, 1928
[este é para você, Vórtex; sei que gostará.]
Agora é invulnerável como os deuses.
Nada na terra pode feri-lo, nem o desamor de uma mulher, nem a tísica, nem as ansiedades do verso, nem essa coisa branca, a lua, que já não tem de fixar em palavras.
Caminha lentamente sob as tílias; olha as balaustradas e as portas, não para lembrá-las.
Já sabe quantas noites e quantas manhãs lhe faltam.
Sua vontade lhe impôs uma disciplina precisa. Executará determinados atos, atravessará previstas esquinas, tocará em uma árvore ou em uma grade, para que o futuro seja tão irrevogável como o passado.
Age dessa maneira para que o fato que deseja e que teme outra coisa não seja que o termo final de uma série.
Caminha pela rua 49; pensa que nunca atravessará este ou aquele pátio lateral.
Sem que suspeitássemos, já se despedira de muitos amigos.
Pensa no que nunca saberá, se o dia seguinte será um dia de chuva.
Passa por um conhecido e lhe faz uma brincadeira. Sabe que esse episódio será, durante certo tempo, mera lembrança.
Agora é invulnerável como os mortos.
Na hora fixada, subirá por alguns degraus de mármore (isto perdurará na memória de outros.)
Descerá ao lavatório; no piso axadrezado a água apagará rapidamente o sangue. O espelho o aguarda.
Ajeitará o cabelo, ajustará o nó da gravata (sempre foi um pouco dândi, como condiz a um jovem poeta) e procurará imaginar que o outro, o do cristal, executa os atos e que ele, seu duplo, repete-os. A mão não lhe tremerá quando ocorrer o último gesto. Docilmente, magicamente, já terá encostado a arma contra a têmpora.
Assim, creio, aconteceram as coisas.
[Jorge Luis Borges, in O Elogio da Sombra]
[este é para você, Vórtex; sei que gostará.]
Agora é invulnerável como os deuses.
Nada na terra pode feri-lo, nem o desamor de uma mulher, nem a tísica, nem as ansiedades do verso, nem essa coisa branca, a lua, que já não tem de fixar em palavras.
Caminha lentamente sob as tílias; olha as balaustradas e as portas, não para lembrá-las.
Já sabe quantas noites e quantas manhãs lhe faltam.
Sua vontade lhe impôs uma disciplina precisa. Executará determinados atos, atravessará previstas esquinas, tocará em uma árvore ou em uma grade, para que o futuro seja tão irrevogável como o passado.
Age dessa maneira para que o fato que deseja e que teme outra coisa não seja que o termo final de uma série.
Caminha pela rua 49; pensa que nunca atravessará este ou aquele pátio lateral.
Sem que suspeitássemos, já se despedira de muitos amigos.
Pensa no que nunca saberá, se o dia seguinte será um dia de chuva.
Passa por um conhecido e lhe faz uma brincadeira. Sabe que esse episódio será, durante certo tempo, mera lembrança.
Agora é invulnerável como os mortos.
Na hora fixada, subirá por alguns degraus de mármore (isto perdurará na memória de outros.)
Descerá ao lavatório; no piso axadrezado a água apagará rapidamente o sangue. O espelho o aguarda.
Ajeitará o cabelo, ajustará o nó da gravata (sempre foi um pouco dândi, como condiz a um jovem poeta) e procurará imaginar que o outro, o do cristal, executa os atos e que ele, seu duplo, repete-os. A mão não lhe tremerá quando ocorrer o último gesto. Docilmente, magicamente, já terá encostado a arma contra a têmpora.
Assim, creio, aconteceram as coisas.
[Jorge Luis Borges, in O Elogio da Sombra]
O labirinto
Zeus não poderia desatar as redes
de pedra que me cercam. Olvidado
dos homens que antes fui; sigo pelo odiado
caminho de monótonas paredes
que é meu destino. Retas galerias
que se curvam em círculos secretos
depois de anos. Parapeitos
que gretou a usura dos dias.
No pálido pó tenho decifrado
rastros que temo. Chega-me pelo ar trazido
nas côncavas tardes um bramido desolado.
Sei que na sombra há Outro, cuja sorte
é fatigar as longas soledades
que tecem e destecem este Hades
e ansiar meu sangue e devorar minha morte.
Buscamo-nos os dois. Quem dera
fosse este o último dia de espera.
[Jorge Luis Borges, in O Elogio da Sombra]
Zeus não poderia desatar as redes
de pedra que me cercam. Olvidado
dos homens que antes fui; sigo pelo odiado
caminho de monótonas paredes
que é meu destino. Retas galerias
que se curvam em círculos secretos
depois de anos. Parapeitos
que gretou a usura dos dias.
No pálido pó tenho decifrado
rastros que temo. Chega-me pelo ar trazido
nas côncavas tardes um bramido desolado.
Sei que na sombra há Outro, cuja sorte
é fatigar as longas soledades
que tecem e destecem este Hades
e ansiar meu sangue e devorar minha morte.
Buscamo-nos os dois. Quem dera
fosse este o último dia de espera.
[Jorge Luis Borges, in O Elogio da Sombra]
quinta-feira, outubro 28, 2004
...
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
[Fernando Pessoa/Álvaro de Campos]
Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.
[Fernando Pessoa/Álvaro de Campos]
terça-feira, outubro 26, 2004
segunda-feira, outubro 25, 2004
O riso da estátua
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha tímida memória mal e mal abarca? - Jorge Luis Borges, “O Aleph”
De vez em quando, esquadrinhando pensamentos antigos e fortuitos, encontramos algumas lembranças que, à semelhança de trastes atirados a um canto do porão, permanecem pousadas nos recônditos da mente à espera de serem descobertas, sua poeira sacudida, umas mãos que as trarão à luz para aplicar-lhes a esquecida finalidade. Em silêncio, aguardam sob grossas camadas de pó, camadas estas que lhes conferem um ar de inutilidade, de esvaziamento da função original. É um engano em que corriqueiramente caímos; nada está perdido, nada é morto, e tudo é por princípio perigoso e instigante.
Pois um dia, possivelmente uma tarde velha dessas de quietude – estou quase certa de que era aquela hora sonolenta em que o mundo dorme sua siesta - , ingressei nos mistérios que moram nas estátuas. Eram quase felizes aqueles tempos, não fosse uma certa melancolia azulada, latente e contínua que, acredito, seja própria a todas as crianças. Quase felizes; as camadas mais profundas da psique, os desdobramentos, a multiplicidade da vida interior, tudo isso ia germinando e se formando dolorosamente em meu espírito. Estranho: eu sabia que a vida era assim mesmo e que dali para diante deveria ser ainda mais um eterno quase, sem resposta possível, sem revelação de completa felicidade que não estivesse ligeiramente maculada pelo azul desmaiado das minhas primeiras e sombrias agitações.
Olhando de longe, era uma estátua comum, uma espécie de querubim longilíneo, branco, contrastando com o vermelho dos ladrilhos rústicos do jardim que não era um jardim forrado de grama e sim coberto por ladrilhos vermelho-terra, cacos irregulares emendados com relativa harmonia e nenhum bom gosto. A casa era azul – sempre o azul – e quieta, dessas que não parecem ser habitadas. A estátua exibia-se impudicamente, sob vestes que mal a recobriam, afrontando a normalidade das casas sem estátua. Por que uma estátua, eu queria sempre saber. Por que colocaram uma estátua no jardim?, perguntava-me. Ficava ali, a uma distância segura. Jamais voltava-me, jamais olhava para trás, porque tinha muito medo de que a estátua se mexesse. Por não olhá-la mais que o necessário, ficava com a sensação de ter os olhos de pedra colados em minha nuca, e isso era não só assustador como, de certa forma, divertido e emocionante. Apertava o passo, sem jamais ultrapassar os passos do adulto que me acompanhava. Uma vontade incrível de voltar a cabeça... E sublinhar com os sentidos minha certeza de que a estátua estaria diferente, então.
Pois um dia entrei no jardim. Não sei com quem, nem para quê. O certo é que entrei e logo postei-me, admirada, diante da estátua. O que primeiro me surpreendeu foi sua cor; era um branco cinzento, poroso, típico do gesso. Havia pó nas dobras mais horizontais, e a estátua, por conta disso, desprendia um cheiro que eu associava aos dias de chuva pouco antes de chover. Toquei-a; era gelada, muito gelada, mas isso já era esperado. Minha segunda e maior surpresa foi o que vi no rosto. Os olhos eram vazios, dois globos brancos aprisionados em uma face sem dono. Olhos fantasmagóricos e estupidamente vazios, olhos que nada refletiam, que nada viam. Só que havia nesse rosto também um sorriso: a estátua sorria exibindo os dentes bem desenhados e retos, vincos no interior da boca, um sorriso fechado que acabou por matar a impressão de que os olhos nada viam. Eles viam, porque havia o sorriso.
Eu jamais vira uma estátua sorrindo. Assustei-me; o riso era silencioso e mórbido, estático e frio. Tudo estava centrado naquele riso acinzentado e duro, como se fosse então uma porta, a única porta para que eu pudesse enxergar todo o restante da estátua, todo o restante das coisas ao redor, todo o restante do mundo e depois me voltasse inteiramente para mim mesma e meu tamanho de criança, meus pensamentos de criança, e com que rapidez isso ocorreu! Foi vertiginosa essa fuga, essa estranha escapada dos meus sentidos, o deslocamento físico que me levou a ficar parada, muito parada, deixando-me atravessar pelas sensações e pelos registros da lembrança que jamais se apagou. Vi flores nas mãos dançarinas da estátua. Vi o passado, o presente e o futuro, sua alma aprisionada em um corpo de gesso, sempre a prisão branca e suja, os céus ficaram escuros de tempestade diante de meus olhos.
Era uma estátua, por princípio, má. Seu riso continha algo de muito obscuro, um saber secreto, uma vida oculta e rica em acontecimentos que, naquele momento, estavam congelados sob camadas de massa endurecida. Por que a sensação de solidão? Por que a idéia de ter sido abandonada naquele jardim estranho, diante da estátua? Tudo se calou enquanto a estátua chocava-se contra o céu escuro de tempestade. Se não fosse o riso... O riso, a qualidade do mal, a expressão de zombaria. Não havia naquele rosto nada das expressões etéreas das estátuas de cemitério. Nada do apelo infantil dos anjinhos gorduchos das gravuras. Nada de placidez, nada de paz imortal. Estava diante de uma estátua repleta de idéias travessas, de planos indecifráveis para quando viesse a noite.
Depois de vê-la bem, e depois de sair daquela casa, ficou-me a memória e seus pertences. Ficou a impressão de medo em mares calmos, o espírito sempre a deslizar por águas mornas, e estas águas mornas sempre a um passo de tornarem-se frias e revoltas. Ficou a iminência de qualquer coisa, eu na pontinha dos pés diante de um grande precipício, o qual imaginava marrom, imaginar fazia minhas pernas doerem. Vou cair? Em meus sonhos era a estátua que me derrubava, não porque estivesse próxima a mim, e sim por que eu a podia avistar do outro lado do precipício, ou lá no fundo, imóvel e com seu sorriso ainda maior do que era na realidade. Chamava-me com voz melíflua e doce, a serpente que hipnotiza o pássaro. Chamava-me sem falar. Por toda a vida tem me chamado sem falar.
[Marpessa - não-ficção]
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha tímida memória mal e mal abarca? - Jorge Luis Borges, “O Aleph”
De vez em quando, esquadrinhando pensamentos antigos e fortuitos, encontramos algumas lembranças que, à semelhança de trastes atirados a um canto do porão, permanecem pousadas nos recônditos da mente à espera de serem descobertas, sua poeira sacudida, umas mãos que as trarão à luz para aplicar-lhes a esquecida finalidade. Em silêncio, aguardam sob grossas camadas de pó, camadas estas que lhes conferem um ar de inutilidade, de esvaziamento da função original. É um engano em que corriqueiramente caímos; nada está perdido, nada é morto, e tudo é por princípio perigoso e instigante.
Pois um dia, possivelmente uma tarde velha dessas de quietude – estou quase certa de que era aquela hora sonolenta em que o mundo dorme sua siesta - , ingressei nos mistérios que moram nas estátuas. Eram quase felizes aqueles tempos, não fosse uma certa melancolia azulada, latente e contínua que, acredito, seja própria a todas as crianças. Quase felizes; as camadas mais profundas da psique, os desdobramentos, a multiplicidade da vida interior, tudo isso ia germinando e se formando dolorosamente em meu espírito. Estranho: eu sabia que a vida era assim mesmo e que dali para diante deveria ser ainda mais um eterno quase, sem resposta possível, sem revelação de completa felicidade que não estivesse ligeiramente maculada pelo azul desmaiado das minhas primeiras e sombrias agitações.
Olhando de longe, era uma estátua comum, uma espécie de querubim longilíneo, branco, contrastando com o vermelho dos ladrilhos rústicos do jardim que não era um jardim forrado de grama e sim coberto por ladrilhos vermelho-terra, cacos irregulares emendados com relativa harmonia e nenhum bom gosto. A casa era azul – sempre o azul – e quieta, dessas que não parecem ser habitadas. A estátua exibia-se impudicamente, sob vestes que mal a recobriam, afrontando a normalidade das casas sem estátua. Por que uma estátua, eu queria sempre saber. Por que colocaram uma estátua no jardim?, perguntava-me. Ficava ali, a uma distância segura. Jamais voltava-me, jamais olhava para trás, porque tinha muito medo de que a estátua se mexesse. Por não olhá-la mais que o necessário, ficava com a sensação de ter os olhos de pedra colados em minha nuca, e isso era não só assustador como, de certa forma, divertido e emocionante. Apertava o passo, sem jamais ultrapassar os passos do adulto que me acompanhava. Uma vontade incrível de voltar a cabeça... E sublinhar com os sentidos minha certeza de que a estátua estaria diferente, então.
Pois um dia entrei no jardim. Não sei com quem, nem para quê. O certo é que entrei e logo postei-me, admirada, diante da estátua. O que primeiro me surpreendeu foi sua cor; era um branco cinzento, poroso, típico do gesso. Havia pó nas dobras mais horizontais, e a estátua, por conta disso, desprendia um cheiro que eu associava aos dias de chuva pouco antes de chover. Toquei-a; era gelada, muito gelada, mas isso já era esperado. Minha segunda e maior surpresa foi o que vi no rosto. Os olhos eram vazios, dois globos brancos aprisionados em uma face sem dono. Olhos fantasmagóricos e estupidamente vazios, olhos que nada refletiam, que nada viam. Só que havia nesse rosto também um sorriso: a estátua sorria exibindo os dentes bem desenhados e retos, vincos no interior da boca, um sorriso fechado que acabou por matar a impressão de que os olhos nada viam. Eles viam, porque havia o sorriso.
Eu jamais vira uma estátua sorrindo. Assustei-me; o riso era silencioso e mórbido, estático e frio. Tudo estava centrado naquele riso acinzentado e duro, como se fosse então uma porta, a única porta para que eu pudesse enxergar todo o restante da estátua, todo o restante das coisas ao redor, todo o restante do mundo e depois me voltasse inteiramente para mim mesma e meu tamanho de criança, meus pensamentos de criança, e com que rapidez isso ocorreu! Foi vertiginosa essa fuga, essa estranha escapada dos meus sentidos, o deslocamento físico que me levou a ficar parada, muito parada, deixando-me atravessar pelas sensações e pelos registros da lembrança que jamais se apagou. Vi flores nas mãos dançarinas da estátua. Vi o passado, o presente e o futuro, sua alma aprisionada em um corpo de gesso, sempre a prisão branca e suja, os céus ficaram escuros de tempestade diante de meus olhos.
Era uma estátua, por princípio, má. Seu riso continha algo de muito obscuro, um saber secreto, uma vida oculta e rica em acontecimentos que, naquele momento, estavam congelados sob camadas de massa endurecida. Por que a sensação de solidão? Por que a idéia de ter sido abandonada naquele jardim estranho, diante da estátua? Tudo se calou enquanto a estátua chocava-se contra o céu escuro de tempestade. Se não fosse o riso... O riso, a qualidade do mal, a expressão de zombaria. Não havia naquele rosto nada das expressões etéreas das estátuas de cemitério. Nada do apelo infantil dos anjinhos gorduchos das gravuras. Nada de placidez, nada de paz imortal. Estava diante de uma estátua repleta de idéias travessas, de planos indecifráveis para quando viesse a noite.
Depois de vê-la bem, e depois de sair daquela casa, ficou-me a memória e seus pertences. Ficou a impressão de medo em mares calmos, o espírito sempre a deslizar por águas mornas, e estas águas mornas sempre a um passo de tornarem-se frias e revoltas. Ficou a iminência de qualquer coisa, eu na pontinha dos pés diante de um grande precipício, o qual imaginava marrom, imaginar fazia minhas pernas doerem. Vou cair? Em meus sonhos era a estátua que me derrubava, não porque estivesse próxima a mim, e sim por que eu a podia avistar do outro lado do precipício, ou lá no fundo, imóvel e com seu sorriso ainda maior do que era na realidade. Chamava-me com voz melíflua e doce, a serpente que hipnotiza o pássaro. Chamava-me sem falar. Por toda a vida tem me chamado sem falar.
[Marpessa - não-ficção]
sábado, outubro 23, 2004
Confronto
Bateu Amor à porta da Loucura.
"Deixa-me entrar - pediu - sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão."
A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.
E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,
enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar.
[Carlos Drummond de Andrade]
Bateu Amor à porta da Loucura.
"Deixa-me entrar - pediu - sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão."
A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.
E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,
enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar.
[Carlos Drummond de Andrade]
quarta-feira, outubro 20, 2004
Pequeno poema de saudade de quem não conheci
(Para Hilda Hilst)
Encanta os anjos
Responde a Deus
Xinga o Diabo
E me esquece...
Para ser santa
Falta a vocação
E sobra na mão
O que nos espanta.
Te leva a morte
Como que foi o arrojo
Nessa estranha vida.
De ontem em diante
Para ser poetisa
(Me perdoem)
Há que chamar-se Hilda.
[Alexandre Beanes, meu caríssimo amigo, poeta de delicadezas]
(Para Hilda Hilst)
Encanta os anjos
Responde a Deus
Xinga o Diabo
E me esquece...
Para ser santa
Falta a vocação
E sobra na mão
O que nos espanta.
Te leva a morte
Como que foi o arrojo
Nessa estranha vida.
De ontem em diante
Para ser poetisa
(Me perdoem)
Há que chamar-se Hilda.
[Alexandre Beanes, meu caríssimo amigo, poeta de delicadezas]
...
Hoje é o último dia. O sol nasceu tão vermelho como sempre, depois amarelando, clareando o céu. Uma destas manhãs em que nos perguntamos o porquê do dia não ser verde-água, tem o azul e o amarelo, por quê? Os pássaros cantaram como sempre, sacudindo-se na rotina de ser pássaro e ter de cantar para espantar a noite. E como sempre, as pessoas despertaram para os banhos e para o café, os carros e seus motores, os bons-dias e o trabalho sobre a mesa. As pessoas constróem o último dia como todos os outros dias.
Alguns, no entanto, permaneceram quietos, ouvindo os ruídos de fora. Quietos em suas camas, enroscados em amores, sonhos, ressaca, silêncios. Faltas e falhas. Ou preenchimento total. Olharam pela janela e ficaram a ver as flores do canteiro, as borboletas. Outros riscaram inutilmente nomes e rostos no espelho. Alguns quedaram-se tristonhos sobre suas xícaras, mastigando torradas murchas com estudada e contemplativa lentidão.
Tudo se seguiu como sempre, naquela seqüência de fatos e de acasos e de ausências e pensamentos e gestos. Tudo como nos dias em que se vai para o banho, o café, os bons-dias, os carros e seus motores, o trabalho sobre a mesa. Tudo como quando se fica mergulhado em cama, amor, borboletas e torradas, rabiscos em um espelho embaçado pelo vapor de um banho como nos dias em que.
Não parece ser o último dia, mas sim o primeiro.
[Marpessa]
Hoje é o último dia. O sol nasceu tão vermelho como sempre, depois amarelando, clareando o céu. Uma destas manhãs em que nos perguntamos o porquê do dia não ser verde-água, tem o azul e o amarelo, por quê? Os pássaros cantaram como sempre, sacudindo-se na rotina de ser pássaro e ter de cantar para espantar a noite. E como sempre, as pessoas despertaram para os banhos e para o café, os carros e seus motores, os bons-dias e o trabalho sobre a mesa. As pessoas constróem o último dia como todos os outros dias.
Alguns, no entanto, permaneceram quietos, ouvindo os ruídos de fora. Quietos em suas camas, enroscados em amores, sonhos, ressaca, silêncios. Faltas e falhas. Ou preenchimento total. Olharam pela janela e ficaram a ver as flores do canteiro, as borboletas. Outros riscaram inutilmente nomes e rostos no espelho. Alguns quedaram-se tristonhos sobre suas xícaras, mastigando torradas murchas com estudada e contemplativa lentidão.
Tudo se seguiu como sempre, naquela seqüência de fatos e de acasos e de ausências e pensamentos e gestos. Tudo como nos dias em que se vai para o banho, o café, os bons-dias, os carros e seus motores, o trabalho sobre a mesa. Tudo como quando se fica mergulhado em cama, amor, borboletas e torradas, rabiscos em um espelho embaçado pelo vapor de um banho como nos dias em que.
Não parece ser o último dia, mas sim o primeiro.
[Marpessa]
segunda-feira, outubro 18, 2004
Duelo
Quem bate agora ao espelho sou eu.
Uma porta que abro e dou com esse diabo
chamado desconhecido:
um corpo sem saída,
chave secreta a destrancar
a fechadura das roupas.
Agora não sou eu: é o espelho quem bate,
inquilino sem licença,
boxe sem alarde, latido de imagem
no canil solto da manhã.
Cada ruga, dobra, flerte,
ele me rosna a mesma indiferença
fria, esse dar de ombros, essa língua
e seu palmo de iceberg.
E assim nos batemos em vidro e retina:
soco de lago vitrificado, fundura
de saber quem é quem na arena
entre códigos e runas:
reflexão nenhuma.
[André Aguiar, amigo que escreve, e muito.]
Quem bate agora ao espelho sou eu.
Uma porta que abro e dou com esse diabo
chamado desconhecido:
um corpo sem saída,
chave secreta a destrancar
a fechadura das roupas.
Agora não sou eu: é o espelho quem bate,
inquilino sem licença,
boxe sem alarde, latido de imagem
no canil solto da manhã.
Cada ruga, dobra, flerte,
ele me rosna a mesma indiferença
fria, esse dar de ombros, essa língua
e seu palmo de iceberg.
E assim nos batemos em vidro e retina:
soco de lago vitrificado, fundura
de saber quem é quem na arena
entre códigos e runas:
reflexão nenhuma.
[André Aguiar, amigo que escreve, e muito.]
sábado, outubro 16, 2004
...
Você está perpetuamente gastando sua energia no ato de equilibrar-se. É dominado por uma espécie de vertigem espiritual, cambaleia na beira, fica com os cabelos em pé, não pode acreditar que por baixo de seus pés exista um abismo imensurável. Isso acontece devido a excesso de entusiasmo, devido a um desejo apaixonado de abraçar pessoas, de mostrar-lhes seu amor. Quanto mais você se estende em direção ao mundo, mais o mundo recua. Ninguém quer amor verdadeiro, ódio verdadeiro. Ninguém quer que você ponha a mão em suas sagradas entranhas – isso é só para o padre na hora do sacrifício. Enquanto você viver, enquanto o sangue ainda estiver quente, tem de fingir que não existe sangue, que não existe esqueleto por baixo da cobertura de carne. Não pise na grama! Esse é o lema pelo qual as pessoas vivem.
Se continuar esse equilíbrio à beira do abismo por bastante tempo, você se tornará muito hábil; seja qual for o lado que o empurrem, sempre se endireitará. Estando em constante forma, você adquire uma alegria feroz, uma alegria antinatural, poderia eu dizer. Só existem hoje no mundo dois povos que compreendem o sentimento desta declaração: os judeus e os chineses. Não fazendo parte de nenhum deles, você se vê em situação estranha. Está sempre rindo no momento errado; é considerado cruel e sem coração, quando na realidade é apenas duro e durável. Mas se ri quando os outros riem e chora quando os outros choram, precisa estar preparado para morrer como eles morrem e viver como eles vivem. Isto significa estar certo e receber o pior ao mesmo tempo. Significa estar morto quando se está vivo e vivo só quando está morto.
[Henry Miller in Trópico de Capricórnio]
Você está perpetuamente gastando sua energia no ato de equilibrar-se. É dominado por uma espécie de vertigem espiritual, cambaleia na beira, fica com os cabelos em pé, não pode acreditar que por baixo de seus pés exista um abismo imensurável. Isso acontece devido a excesso de entusiasmo, devido a um desejo apaixonado de abraçar pessoas, de mostrar-lhes seu amor. Quanto mais você se estende em direção ao mundo, mais o mundo recua. Ninguém quer amor verdadeiro, ódio verdadeiro. Ninguém quer que você ponha a mão em suas sagradas entranhas – isso é só para o padre na hora do sacrifício. Enquanto você viver, enquanto o sangue ainda estiver quente, tem de fingir que não existe sangue, que não existe esqueleto por baixo da cobertura de carne. Não pise na grama! Esse é o lema pelo qual as pessoas vivem.
Se continuar esse equilíbrio à beira do abismo por bastante tempo, você se tornará muito hábil; seja qual for o lado que o empurrem, sempre se endireitará. Estando em constante forma, você adquire uma alegria feroz, uma alegria antinatural, poderia eu dizer. Só existem hoje no mundo dois povos que compreendem o sentimento desta declaração: os judeus e os chineses. Não fazendo parte de nenhum deles, você se vê em situação estranha. Está sempre rindo no momento errado; é considerado cruel e sem coração, quando na realidade é apenas duro e durável. Mas se ri quando os outros riem e chora quando os outros choram, precisa estar preparado para morrer como eles morrem e viver como eles vivem. Isto significa estar certo e receber o pior ao mesmo tempo. Significa estar morto quando se está vivo e vivo só quando está morto.
[Henry Miller in Trópico de Capricórnio]
Heroísmo antropofágico
Chega o dia em que ao herói só é dada uma única saída honrosa: alimentar-se de si mesmo. Tal tarefa não é simples, não apenas pelas óbvias limitações psicanalíticas, mas também porque ao herói é concedido o benefício (?) da dúvida. Ele não sabe se é melhor perecer com a naturalidade de um homem ou tornar-se fagócito de si, alquebrando-se em centenas de partes e, dor das dores, sentir o gosto de cada uma delas para então tornar a nascer.
A dúvida, esta varejeira azul que sobrevoa com especial prazer as feridas mais sujas, atormenta o herói à beira do abismo e traz consigo uma necessidade quase animal de compreender o porquê de estar ali e de ter apenas uma única saída (desde que opte por defender sua condição).
Se por misericórdia os deuses acudirem, o herói então entenderá que nada é mais epifânico do que vivenciar este paradoxo final: perecer alimentando-se de si para depois regurgitar-se. Dar-se de comer as entranhas, os membros, as poderosas mãos, a cabeça de pedra maciça. Comer as lembranças. E vomitar, aliviado.
[Marpessa]
Chega o dia em que ao herói só é dada uma única saída honrosa: alimentar-se de si mesmo. Tal tarefa não é simples, não apenas pelas óbvias limitações psicanalíticas, mas também porque ao herói é concedido o benefício (?) da dúvida. Ele não sabe se é melhor perecer com a naturalidade de um homem ou tornar-se fagócito de si, alquebrando-se em centenas de partes e, dor das dores, sentir o gosto de cada uma delas para então tornar a nascer.
A dúvida, esta varejeira azul que sobrevoa com especial prazer as feridas mais sujas, atormenta o herói à beira do abismo e traz consigo uma necessidade quase animal de compreender o porquê de estar ali e de ter apenas uma única saída (desde que opte por defender sua condição).
Se por misericórdia os deuses acudirem, o herói então entenderá que nada é mais epifânico do que vivenciar este paradoxo final: perecer alimentando-se de si para depois regurgitar-se. Dar-se de comer as entranhas, os membros, as poderosas mãos, a cabeça de pedra maciça. Comer as lembranças. E vomitar, aliviado.
[Marpessa]
segunda-feira, outubro 11, 2004
...
É madrugada, horário mágico que antecede a Criação. Encosto meu rosto contra o vidro da janela. Ao longe, um cão solta um latido débil, que logo desaparece encoberto pelo silêncio de sepulcro que rege o mundo. Meus olhos pendem para o canto esquerdo da rua, buscando um sinal. Seu sinal. Luzes amarelas ainda reinam invictas, apesar de as poucas estrelas estarem finalmente desaparecendo.
Instante tão quieto merecia companhia. Sua companhia.
Mas nada de ti.
Rememoro o primeiro instante em que pus a vista em você e no que pensei, eu sou assim, você bem sabe: esse prazer envergonhado de rememorar e te lamber e te farejar pelos cantos escuros da memória, te caçando como uma águia enquanto você escapa com uma facilidade que me ofende. Ainda assim, um momento de distração sua e pronto, eis você diante de mim, esparramando aquele sorriso que conheço tão bem e de tanto tempo.
Seu sorriso.
Distraindo-se, aprisiono-te sem piedade.
Tudo de ti, agora.
Um primeiro pássaro canta. Logo, centenas de outros acordarão para festejar o dia, e nós deveríamos, que diabo, festejar também porque a vida é uma só e perdemos tanto em não comemorar o alvorecer como os pássaros fazem, com excelência, de modo irretocável.
Encho-me de poesia. Tua poesia.
O céu desbota devagar.
Reconstruo teu rosto seguindo as pistas que a sua imagem aprisionada me apresenta. Vejo você chorando, absoluto indício de fragilidade, aquele dia, tudo tão morno e doloroso. Estávamos às vésperas do outono e você chorou de modo tão doído que agora, diante da madrugada que desmaia, tudo o que enxergo são lágrimas. Minhas lágrimas, que teimam em brotar.
Não estou verdadeiramente triste. O que me dá aqui por dentro é um encantamento diante da sua imagem, emparedada por mim, pronta para me servir de bálsamo porque o belo é mais que sagrado. Diante mim, confundidos, o dia e você, no mesmo prato de balança.
Celebro na solidão o mundo nascendo, e com ele você, de novo, em mim.
[Marpessa]
É madrugada, horário mágico que antecede a Criação. Encosto meu rosto contra o vidro da janela. Ao longe, um cão solta um latido débil, que logo desaparece encoberto pelo silêncio de sepulcro que rege o mundo. Meus olhos pendem para o canto esquerdo da rua, buscando um sinal. Seu sinal. Luzes amarelas ainda reinam invictas, apesar de as poucas estrelas estarem finalmente desaparecendo.
Instante tão quieto merecia companhia. Sua companhia.
Mas nada de ti.
Rememoro o primeiro instante em que pus a vista em você e no que pensei, eu sou assim, você bem sabe: esse prazer envergonhado de rememorar e te lamber e te farejar pelos cantos escuros da memória, te caçando como uma águia enquanto você escapa com uma facilidade que me ofende. Ainda assim, um momento de distração sua e pronto, eis você diante de mim, esparramando aquele sorriso que conheço tão bem e de tanto tempo.
Seu sorriso.
Distraindo-se, aprisiono-te sem piedade.
Tudo de ti, agora.
Um primeiro pássaro canta. Logo, centenas de outros acordarão para festejar o dia, e nós deveríamos, que diabo, festejar também porque a vida é uma só e perdemos tanto em não comemorar o alvorecer como os pássaros fazem, com excelência, de modo irretocável.
Encho-me de poesia. Tua poesia.
O céu desbota devagar.
Reconstruo teu rosto seguindo as pistas que a sua imagem aprisionada me apresenta. Vejo você chorando, absoluto indício de fragilidade, aquele dia, tudo tão morno e doloroso. Estávamos às vésperas do outono e você chorou de modo tão doído que agora, diante da madrugada que desmaia, tudo o que enxergo são lágrimas. Minhas lágrimas, que teimam em brotar.
Não estou verdadeiramente triste. O que me dá aqui por dentro é um encantamento diante da sua imagem, emparedada por mim, pronta para me servir de bálsamo porque o belo é mais que sagrado. Diante mim, confundidos, o dia e você, no mesmo prato de balança.
Celebro na solidão o mundo nascendo, e com ele você, de novo, em mim.
[Marpessa]
quarta-feira, outubro 06, 2004
Aqui. Hoje.
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.
[Jorge Luis Borges]
Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.
[Jorge Luis Borges]
terça-feira, outubro 05, 2004
Quatro
Começou assim: com uma inocente atração. Um olhar mais atento, apenas. Quase como uma torta de limão que namoramos em uma vitrine, e que sempre que passamos diante da doceria, torcemos o pescoço e espiamos na prateleira se por acaso a torta de limão está lá (que deverá ser outra e outra, nunca a mesma, se a doceria for honesta e vender produtos frescos). Então, eu estava atraído pelo número quatro.
Passei a dar quatro passos de cada vez, contando-os um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, concentrando-me em sempre pisar cada número com o mesmo pé, em todas as vezes. Naturalmente, evitava pisar em linhas entre os ladrilhos das calçadas, porque jamais gostei de pisá-las, mesmo, isso pouco tem a ver com o número quatro, mas dá um panorama mais geral do meu comportamento naquele tempo. Era uma criança com manias.
Voltando ao assunto: contava os ladrilhos de quatro em quatro, olhando firme para o chão com o propósito de evitar as linhas. Quando falhava, ajeitava o passo como os membros de uma fanfarra, ao se atrapalharem com os pés na marcha “esquerda, direita, esquerda! esquerda, direita, esquerda!”. Tudo em minha vida ia muito bem, mesmo quando recusava-me a comer “três” ou “dois” pedaços de frango, ou “um” pêssego; cortava-os até obter quatro pedaços menores ou pelo menos um múltiplo satisfatório, como o oito, o doze, o dezesseis. Mantinha quatro lápis no estojo, e muito me agoniava ter cinco livros para levar à escola. Se fossem dois, ao menos! Números ímpares eram assustadores.
Os anos correram e quando vi estava adulto. Não devo aqui enumerar todos os novos fatos referentes aos meus sentimentos em relação ao número quatro; basta dizer que houve muita novidade e avanços nesse terreno. Posso exemplificar com as quatro namoradas, quatro exemplares do mesmo livro, oito pares de sapato e dezesseis camisetas. Era perfeitamente possível viver em função de um algarismo, eu provara, uma vez que minha mania não fazia muita distinção entre o objeto e seus derivados. Vinte, vinte e quatro, vinte e oito, eram tão bons números quanto o próprio quatro, isso eu achava de verdade e portanto não me incomodava.
O interessante era que ninguém, ninguém percebera nada disso. Eu nunca falava a respeito, e todos os meus amigos, minha família, estavam longe de conhecer esse traço que me caracterizava no mais fundo do meu ser. Todos tão desatentos! Acho mesmo que só vieram a saber muito depois, e tarde demais, é claro; de qualquer forma, preferiram o silêncio.
Ao participar do assalto, o primeiro erro foi que decidi por conta própria arrombar quatro apartamentos em vez de três. O quarto domicílio era de um policial, e fomos todos presos - eu e mais três. Confessei mais do que precisava (segundo erro) e ganhei belos oito anos. Não pretendo pedir apelação, já que o quarto aniversário de cadeia já passou. Estou no quinto ano, e por isso tento preenchê-lo o mais possível para que passe logo. Escrevo, pinto quadros, faço miniaturas de papel. Tenho uma grande coleção de miniaturas aqui, guardadas em quatro caixas de sapato.
Por isso fui pego. Minha história não é patética? Por que não revelei aos outros o que me acontecia? Era mais forte do que eu. Ainda é mais forte do que eu, porque nada faço aqui se não for de quatro em quatro. Temos quatro na cela, veja só que sorte a minha. Morro de medo de que enfiem mais um. Terei que clamar por outros três para conseguir dormir, conseguir viver, concentrar-me em minhas atividades. Nenhum diretor de presídio entenderia o meu problema, e então eu teria que me conformar. Conseguiria, assim, curar-me? Não posso saber, nem sei se quero, essa mania é minha, é a única coisa de minha-somente-minha que possuo. Não vão tirá-la de mim tão facilmente.
Para finalizar, crio este oitavo parágrafo (bom múltiplo, mas inferior ao dezesseis). Como nada mais desejo dizer, ficará quase em branco. Sua existência já diz muito. É preciso que exista.
[Marpessa]
Começou assim: com uma inocente atração. Um olhar mais atento, apenas. Quase como uma torta de limão que namoramos em uma vitrine, e que sempre que passamos diante da doceria, torcemos o pescoço e espiamos na prateleira se por acaso a torta de limão está lá (que deverá ser outra e outra, nunca a mesma, se a doceria for honesta e vender produtos frescos). Então, eu estava atraído pelo número quatro.
Passei a dar quatro passos de cada vez, contando-os um, dois, três, quatro, um, dois, três, quatro, concentrando-me em sempre pisar cada número com o mesmo pé, em todas as vezes. Naturalmente, evitava pisar em linhas entre os ladrilhos das calçadas, porque jamais gostei de pisá-las, mesmo, isso pouco tem a ver com o número quatro, mas dá um panorama mais geral do meu comportamento naquele tempo. Era uma criança com manias.
Voltando ao assunto: contava os ladrilhos de quatro em quatro, olhando firme para o chão com o propósito de evitar as linhas. Quando falhava, ajeitava o passo como os membros de uma fanfarra, ao se atrapalharem com os pés na marcha “esquerda, direita, esquerda! esquerda, direita, esquerda!”. Tudo em minha vida ia muito bem, mesmo quando recusava-me a comer “três” ou “dois” pedaços de frango, ou “um” pêssego; cortava-os até obter quatro pedaços menores ou pelo menos um múltiplo satisfatório, como o oito, o doze, o dezesseis. Mantinha quatro lápis no estojo, e muito me agoniava ter cinco livros para levar à escola. Se fossem dois, ao menos! Números ímpares eram assustadores.
Os anos correram e quando vi estava adulto. Não devo aqui enumerar todos os novos fatos referentes aos meus sentimentos em relação ao número quatro; basta dizer que houve muita novidade e avanços nesse terreno. Posso exemplificar com as quatro namoradas, quatro exemplares do mesmo livro, oito pares de sapato e dezesseis camisetas. Era perfeitamente possível viver em função de um algarismo, eu provara, uma vez que minha mania não fazia muita distinção entre o objeto e seus derivados. Vinte, vinte e quatro, vinte e oito, eram tão bons números quanto o próprio quatro, isso eu achava de verdade e portanto não me incomodava.
O interessante era que ninguém, ninguém percebera nada disso. Eu nunca falava a respeito, e todos os meus amigos, minha família, estavam longe de conhecer esse traço que me caracterizava no mais fundo do meu ser. Todos tão desatentos! Acho mesmo que só vieram a saber muito depois, e tarde demais, é claro; de qualquer forma, preferiram o silêncio.
Ao participar do assalto, o primeiro erro foi que decidi por conta própria arrombar quatro apartamentos em vez de três. O quarto domicílio era de um policial, e fomos todos presos - eu e mais três. Confessei mais do que precisava (segundo erro) e ganhei belos oito anos. Não pretendo pedir apelação, já que o quarto aniversário de cadeia já passou. Estou no quinto ano, e por isso tento preenchê-lo o mais possível para que passe logo. Escrevo, pinto quadros, faço miniaturas de papel. Tenho uma grande coleção de miniaturas aqui, guardadas em quatro caixas de sapato.
Por isso fui pego. Minha história não é patética? Por que não revelei aos outros o que me acontecia? Era mais forte do que eu. Ainda é mais forte do que eu, porque nada faço aqui se não for de quatro em quatro. Temos quatro na cela, veja só que sorte a minha. Morro de medo de que enfiem mais um. Terei que clamar por outros três para conseguir dormir, conseguir viver, concentrar-me em minhas atividades. Nenhum diretor de presídio entenderia o meu problema, e então eu teria que me conformar. Conseguiria, assim, curar-me? Não posso saber, nem sei se quero, essa mania é minha, é a única coisa de minha-somente-minha que possuo. Não vão tirá-la de mim tão facilmente.
Para finalizar, crio este oitavo parágrafo (bom múltiplo, mas inferior ao dezesseis). Como nada mais desejo dizer, ficará quase em branco. Sua existência já diz muito. É preciso que exista.
[Marpessa]
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