Correntes
Daquelas noites em que nada se sabe e quase nada se quer. O que viesse seria lucro.
Os pêlos do meu braço estava arrepiados o suficiente para machucar. Tomei um conhaque sem pensar duas vezes e sem sentir o sabor. O fato é que eu estava ali abandonado, arrastando minha auto-piedade feito correntes de setecentos elos.
Minha cabeça paria pensamentos estranhos sob a garoa. Cada esquina se afigurava como o maior e mais temido dos desafios. Deixava para trás toda e qualquer placa de sinalização, mas minhas correntes de setecentos elos se enroscavam em um bar, um velho conhecido ou um telefone público.
Aquilo precisava acabar, pois meus pés doíam e sentiam falta de massagem. Encostei no ponto de ônibus e pus-me a ouvir Lou Reed cantando baixinho em meus ouvidos. Jamais uma sensação musical fora tão boa quanto naquele momento – Lou, meu bálsamo e meu martírio covarde. Ele, brincando de amaldiçoar pessoas e coisas e lugares com seu lirismo sádico.
Lou cantava e eu caminhava de novo. Uma brasa seca brilhava a cinco centímetros dos meus dedos. Soprei longe a fumaça. Não era tão bonito quanto parece ser quando apenas se pensa sobre isso: um cigarro sob a noite enevoada com Lou nos ouvidos e o coração abalroado por uma onda incontrolável. Apenas poesia, nada real, nada comparável aos setecentos elos das minhas correntes que não deixavam saídas fáceis. Lou não faria massagem nos meus pés naquela noite.
E havia o vazio, claro.
Era demais olhar-me nas vitrines escuras dos bancos e ver minha triste silhueta. Cabelos escorridos. Ao perceber meus olhos atrás das lentes gotejadas dos óculos, que dor! Nenhuma tristeza nesse mundo pode se comparar àquilo: lentes molhadas. Um garoto solitário novamente, uma criança que ninguém quer, menino de dez anos que ainda não sabe de nada da vida e não conhece boas respostas, ameaçado pelos garotos grandes e ignorado pelas meninas cruéis. Óculos, coroa de espinhos.
Enfiei as mãos nos bolsos. Minhas correntes rangiam alto e eu temi que alguém pudesse ouvir – só que não havia mais ninguém na rua. Menino de dez anos que gostava de sofrer e se deliciava em sentir pena de si mesmo. Todo sentimento fica mais fluido ao amanhecer, mas não para aquele menino que andava dentro de mim tentando sair.
De súbito, uma esquina acabou com todo o mistério. Um carro bonito virou a rua e parou no farol. Enquanto eu caminhava sem prestar muita atenção, uma blusa cor-de-rosa saltou de dentro do carro para queimar minhas retinas. Uma gota nos óculos luziu avermelhada. Fixei os olhos e vi os cabelos loiros e uma boca enorme sorrindo, tão grande que eu poderia adivinhar o gosto daquele batom. O motorista sorrindo também e sua mão direita, mãos de homem, tocando o queixo rosa e suave enquanto o farol não abria.
A corrente pesou, o suspense se foi. As lentes molharam-se ao mesmo tempo em que o amargo subiu à garganta. Aquele sorriso vermelho e os fios dourados, bonitos e soltos, aquele brilho de estrelas... Um tiro de raiva passou por mim. A saliva estava grossa e eu cuspi longe aquela ira que dava-me náuseas.
Era o fim de uma esperança, um fim que chega destruindo todo um processo, uma longa lista de pensamentos. Algo como almoçar em cinco minutos depois de ter levado três horas para preparar o almoço.
Pareceu demorar muito a sumir a visão daquela menina. Por um instante parei e olhei para cima, murmurando “Deus, o que estou fazendo?”, porque me ocorreu que estar ali era apenas mais uma desculpa para sofrer e remoer minhas dores. Novamente, a imensa solidão urbana me agarrou.
Mandar tudo à merda. Todos os setecentos elos. Que o mundo queime até o fim, que as chamas consumam cada par de óculos, cada gota de orvalho, cada boca vermelha. Que consumam Lou Reed e meu walkman, meus ouvidos e minha cabeça.
Mas jamais a chama virá. Ela não sai do meu coração. Só eu me queimo, tenho febres intermináveis, ânsias de vômito. A dor. A dor. Todo mundo tem alguém para compartilhar a dor, mas eu não. Eu a suporto sozinho, não porque sou mais forte do que todo mundo e sim porque todo mundo é bem mais forte do que eu.
Lou grita, em seu jeito sussurrante, que este é um dia perfeito. Beber sangria no parque. Imagino isso enquanto ando, ando, ando. Um parque novaiorquino de outono, um lindo parque com milhões de folhas marrons. Frio, vento e alguém ao meu lado, alguém cujo rosto não consigo desenhar. Uma garota não vulgar, não de batom vermelho. Uma garota discreta como uma francesa, de olhos inteligentes, de sorriso amplo e cabelos negros com alguns fios caindo pelo rosto pálido. Sardas e sonhos. Riso encabulado em alguns momentos, franco e aberto em outros. Já tenho um rosto, enfim, mas por ser um rosto diferente não consigo encaixar as feições. Como seria essa garota? Com quem se pareceria?
Eu realmente prefiro que não se pareça com ninguém.
E eu estaria ali, oferecendo à amiga uma dose de sangria disfarçada em um saco de papel. Estaria de sobretudo. E de óculos, ela não se importaria, quem sabe até achasse charmoso (talvez ela também usasse óculos). E cachecol cinza. E um chapéu – que a bela menina de vez em quando colocaria em sua bela cabeça apenas para fazer graça e perguntar “e então, como estou?” com um sorriso que pertenceria aos deuses, e não a mim. Merda de cinema. Minha imaginação sempre é um espelho dos filmes que vejo.
Mas a garota seria minha amiga de verdade. Ouviríamos música no parque. Estaríamos felizes apenas pelo fato de estarmos sentados lado a lado, mesmo que não houvesse o que dizer. O sorriso não deixaria nossos rostos. Não penso em beijos. Não quero tocar nela. Quero apenas vê-la e deixar-me levar, ver o dia branco morrer, não pensar na noite e nem no que virá depois da noite. Ela ajudaria a carregar minha corrente de setecentos elos e eu ajudaria a carregar a dela, pois certamente também teria uma. Ficaríamos satisfeitos com este arranjo, mas não falaríamos nele nunca, pois o peso das correntes poderia estragá-lo. Volto a fita mais uma vez e me deixo ficar junto a outro ponto de ônibus. Já não vejo as pessoas e meus óculos estão completamente molhados. Procuro.
Just a perfect day, drink sangria in the park. And then later when it gets dark, we go home. Só queria este pedaço de universo, esse miserável rasgo no céu sombrio que é a minha vida desde o começo. Ela, ela moraria neste rasgo no céu sombrio, bem pequena, lá longe, e eu só a olhando, seu rosto, suas asas de anjo. Pequena e bem distante, no único pedaço azul do meu céu. Meu Deus, eu sabia agora como era amar e amava dolorosamente minha quimera, como se estivesse ao alcance de um telefonema. Faria um altar para ela e somente a ela me devotaria.
Todas as minhas promessas de amor serão para ti.
A realidade se derrama sobre mim. É como nascer: a luz, o frio, o fim do longo sono. Não é bom voltar a viver. Eu não queria mais sair do rasgo azul no céu sombrio. Eu não queria ser assim, eu queria detestar Lou Reed e permanecer contente, mas acho que não dá mais e então um carro passa, encharcando meu corpo com a água empoçada no meio-fio. Protejo meu walkman, pois sem ele eu não seria ninguém e não haveria mais noite. Outra vez a realidade. Meu relógio aponta duas e quinze e meu corpo está gelado. Meus pés ainda doem, agora eu os sinto de novo. Meu peito arde e a corrente pesa demais.
Já sonhei em dobrar a esquina e encontrar a salvação. O problema é que não adianta dobrar a esquina esperando por isso, porque a salvação nunca chega.
Fiquei um pouco mais adulto naquele instante. E mais pensativo e mais resoluto. Vou embora, pensei. Melhor devanear na cama até o sono chegar. A idéia de devanear em paz foi bastante atraente, mas pensar no amanhecer me fez notar que a noite e a cama são apenas uma passagem para um nada que não pára de acontecer, rodeando meu corpo como um véu.
E se não havia saída, então quem sabe indo para casa eu encontrasse aquela suave figura, arrastando sua pesada corrente de setecentos elos, disposta a dividi-la comigo.
[Marpessa, 1997]